quinta-feira, 23 de abril de 2009

Sobre o fumo e as incoerências tucanas

Reproduzimos abaixo o excelente comentário do blog Entrelinhas (http://blogentrelinhas.blogspot.com/2009/04/incoerencias-tucanas.html), que trata da questão da proibição do fumo.

"Um bom artigo sobre a lei antifumo do governador José Serra (PSDB) saiu na revista Época desta semana. Vale a leitura, até porque o autor é bastante sincero e avisa logo que é fumante.

Este blog defende uma posição bastante particular neste debate: assim como existe casa noturna com frequência exclusivamente gay (há também as tais GLS), deveria ser regulamentado um número determinado de "franquias" para restaurantes, bares e casas noturnas em que o fumo seria permitido. Digamos que 20% ou 10% dos estabelecimentos seriam livres para fumantes, com avisos na porta, bem claros – pode até ser uma caveirinha humana com dois cigarros acesos cruzados embaixo ou a cara feia do governador Serra, tanto faz. A proibição valeria para 80% ou 90% dos locais e os empresários que quisessem poderiam operar o nicho do público fumante sem maiores dores de cabeça. Quem não fuma tem seus direitos preservados - basta não entrar nos esfumaçados ambientes livres para o cigarro - e quem fuma pode se enfurnar entre seus companheiros de trago e de dor sem ser visto com uma espécie de ET.

É evidente que a lei do governador José Serra tem um viés totalitário – o texto chega ao cúmulo de proibir tabacarias de servir comida, o que não faz sentido: por que diabos o pessoal que curte um charuto não pode bebericar e petiscar entre uma tragada e outra? Por outro lado, também é verdade que a tendência mundial é mesmo a de restringir o direito dos fumantes. O blog concorda plenamente com a proibição em praticamente todos os locais públicos e privados fechados, à exceção de residências, mas considera que é preciso um pouco de bom senso em relação a locais em que o fumo é tradicionalmente utilizado, como bares e casas noturnas, em especial. A "cota para fumantes" resolveria esta questão com facilidade, sem prejuízo para os não fumantes. Abaixo, o texto de Ricardo Amaral publicado em Época.

Por que não proíbem logo fabricar cigarros?"

A lei antifumo de Serra não combate o cigarro: ela estigmatiza o fumante e envenena a sociedade

Ricardo Amaral

É difícil apontar o pior defeito da lei antifumo que o governador José Serra fez aprovar na Assembleia Legislativa de São Paulo. Ela consegue ser iníqua, demagógica e ineficaz ao mesmo tempo. Serve pouco ou nada para reduzir os males ou combater o vício do tabagismo, mas contribui, e muito, para fomentar uma histeria discriminatória que anda envenenando as relações sociais. Não é uma lei contra o cigarro. É só mais um instrumento, com o peso do Estado, para estigmatizar o fumante.

Vou logo avisando: fumo, desde os 15 anos de idade, uma quantidade razoável de cigarros por dia. Não menos do que 15, às vezes até 30 ou mais, depende. Ao longo dos anos, prejudiquei a saúde e o bem-estar de quem conviveu comigo em salas, gabinetes, redações – e, pasmem as novas gerações, também em cinemas, teatros, ônibus e aviões (em elevadores, só na Europa). O tempo do tabagismo selvagem e estúpido passou. Meu passivo hoje é com minha própria saúde e com a estabilidade emocional dos meus filhos, minha mulher e de todos que gostam de mim, apesar do cigarro. Não são poucos motivos para parar de fumar. Posso dispensar o concurso do governador e dos senhores deputados.

Se o leitor continuar disposto a considerar os argumentos de um fumante, mesmo suspeito de parcialidade, vamos a eles. Basta um teste simples para saber se uma iniciativa é realmente eficaz para reduzir o consumo de cigarros: conferir a reação dos fabricantes. A Lei Serra nem sequer fez cócegas na indústria do fumo. Os sindicatos dos hoteleiros e dos donos de bares e restaurantes é que anunciam ações judiciais contra a nova lei. Devem ganhar, mas vão pagar o desgaste de uma ação considerada politicamente incorreta. A indústria do cigarro só se mexe quando é atingida no cofre, pela elevação de impostos, ou no balcão, pelo controle dos pontos de venda.

Há um detalhado estudo sobre a relação entre impostos, preços e consumo de cigarros feito pelo economista Roberto Iglesias para a Aliança de Controle do Tabagismo no endereço http://actbr.org.br/uploads/conteudo/200_Precos-impostos-ACTBR.pdf. Ele demonstra como a indústria brasileira viveu os últimos dez anos num paraíso fiscal de tabacaria, sob o pretexto de combater o contrabando, e como essa política aumentou o consumo interno. Entre 1998 e 2007, o peso relativo do IPI sobre os cigarros caiu de 36,3% para 20,5%, enquanto o número de maços vendidos no país passou de 4,8 bilhões para 5,5 bilhões. Aumentar imposto e preço é também a forma mais eficiente de reduzir a adesão de jovens ao vício.

Nada disso é novidade para o governador José Serra. Ele enfrentou a indústria do fumo e lhe impôs grandes derrotas quando foi ministro da Saúde. Proibiu a propaganda de cigarros na televisão e nos carros de Fórmula 1, obrigou os fabricantes a estampar aquelas fotografias repugnantes nas embalagens, colocou o Brasil na vanguarda da prevenção contra os males do fumo. Trabalhei na equipe do Ministério da Saúde em 1999 e sou testemunha do antitabagismo sincero de Serra. E me recordo de ter convivido com um ministro tolerante. Serra tinha até cinzeiros em casa.

A lei pode estar inspirada em boas intenções, mas o resultado é uma violência – não só contra o fumante. Ela começa pela abolição do livre-arbítrio. A pretexto de garantir o direito da maioria, ela proíbe o exercício da racionalidade. O cidadão é considerado incapaz de decidir sobre o que pode ou não pode fazer em espaços privados. Provavelmente é essa lógica autoritária que define o erro seguinte da lei: o desobediente não sofre sanção alguma, no máximo será removido por força policial. O fumante torna-se inimputável, como os índios e os loucos. Por fim, a aberração mais perigosa de todas: as multas previstas na lei recaem sobre o proprietário, responsável ou preposto que tolerar o fumo em locais de uso coletivo. É a terceirização da pena pelo crime que outra pessoa cometeu.

A lei é perniciosa na forma e perversa nas consequências porque estimula a delação. Ela envenena a convivência, a pretexto de limpar o ambiente. Se o Estado quer mesmo combater o vício, por que não proíbe logo a produção de cigarros e dispensa uma arrecadação anual de R$ 6 bilhões em impostos?

Não sei aonde o governador José Serra quer chegar apagando cigarros pelas ruas de São Paulo. Se ele olhar em volta, verá que o ex-presidente Fernando Henrique corre o mundo defendendo a legalização da maconha.

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