Reproduzo o texto de Maurício Tagliari, publicado no sítio Terra Magazine.
Que música e álcool formam uma dupla do barulho não é novidade pra ninguém. Só outro dia, porém, me dei conta das variantes etílico-estilísticas do cancioneiro mundial. Há toda uma escola de Irish songs voltadas para a nobre prática etílica. As canções de cervejaria também tem sua história entre os povos germânicos. Estas, como aquelas, são práticas culturais dos povos. Provavelmente com raízes muito antigas, bárbaras e greco-romanas. Imagino que deva ter havido algo parecido nas orgias de cauim perpetradas pelos ameríndios e descritas pelos primeiros viajantes europeus ao Novo Mundo. Manifestações espontâneas de alegria e celebração.
Mas, na chamada indústria cultural, a bebida também tem presença importante. Noto, empiricamente, uma transformação sincrônica aos costumes. Uma tendência à glorificação do porre. Mas nem sempre foi assim.
Basicamente, podemos dividir as canções populares em três ou quatro tipos. As mais tradicionais são canções tristes, da perda de um amor, de dor de cotovelo, etc. Depois, há canções festivas, que convocam à bebedeira, penso que herdeiras das mais tradicionais citadas acima. E finalmente as de elegia a uma bebida específica. Quase uma propaganda.
Dentre as últimas, podemos elencar clássicos como a instrumental Tequila, sucesso da banda The Champs, nos anos 50. Curiosamente, era o lado B de um 78 rpm, gravada apenas para preencher o espaço. Mas alcançou o topo das paradas com um riff de sax e uma voz rouca que dizia apenas "tequila" três vezes, nos breques, durante a faixa toda. Da música do lado A, Train to Nowhere, ninguém lembra mais.
Outra antiga, mais classuda, como convém à bebida, é Champagne, de Pepino de Capri, um sucesso dos anos 70. Este tema canta um amor proibido e beira o outro estilo, da dor de cotovelo, mas tem um final mais otimista, graças à espumante francesa: ma io, io devo festeggiare/la fine di un amore/cameriere champagne.... Ele bebe solitário, mas não completamente infeliz. Assim como não parece nada infeliz o blues de George Thorogood I Drink Alone, uma canção que não se encaixa bem nas classificações justamente por nem convidar ao consumo nem elogiar uma bebida em especial. Se contenta em afirmar I drink alone, yeah /With nobody else /You know when I drink alone /I prefer to be by myself. Menciona seu good buddy Wiser, seu pal Jack Daniel's e até seu partner Jimmy Beam.
Entre as que elegem uma certa bebida, infelizmente, não me ocorre uma boa canção sobre Dry Martini. Conheci, porém, recentemente, uma banda de folk metal da Finlândia chamada Korpiklaani, que toca uma obra-prima chamada Vodka. Este rock já entrou para o meu repertório. A letra, enorme, diz coisas como Vodka, you're feeling stronger/Vodka, no more feeling bad/Vodka, you are the real MAN/Vodka, wipes away your tears/Vodka, removes your fears/Vodka, everyone is gorgeous. E completa, prometendo pureza, that the vodka/We serve, is as pure as it was/Thousands of years ago. Pena não ter existido vodka milhares de anos atrás...
Dentre as canções tristes, existem aquelas do "beber para esquecer". O famoso reagge Red Red Wine diz literalmente Red, red wine /Go to my head /Make me forget that I /Still need her so. E o grande John Lee Hooker, quando sua garota parte, ordena urgente e peremptoriamente: One bourbon, one scotch, and one beer/Hey mister bartender come here/I want another drink and I want it now. São letras que não devem nada ao nosso Reginaldo Rossi e seu sucesso Garçom.
E com isso chegamos finalmente ao nosso terreiro. A assim chamada orgia foi o berço do samba e de grande parte do cancioneiro popular da Era de Ouro do Rádio. Noel, Ismael, Nelson, todos foram muito bons de copo. Nossa cachaça entrou na música pela porta da marchinha de carnaval.
As águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar.
Um dos maiores sucessos de todos os tempos nos carnavais de salão é justamente Cachaça, de Mirabeau Pinheiro, um alfaiate de Niterói que criou também um outro clássico etílico: A Turma do Funil. Cachaça é a marchinha que adverte: Se você pensa que cachaça é água, cachaça não é água, não, mas se entrega ao final dizendo que pode me faltar tudo na vida...mas só não quero é que me falte, a danada da cachaça. O lado moralista e até altruísta também aparece no seu outro clássico quando ele diz Nós é que bebemos e eles que ficam tontos, morou /Eu bebo sem compromisso /É o meu dinheiro /Ninguém tem nada com isso.
A outra porta da cachaça foi a música caipira. Inezita Barroso e a impagável Moda da Pinga, de Ochelsis Laureano e Raul Torres, fizeram época. E a época eram os 50s. É uma afirmação do direito de beber e se divertir. São estrofes enfocando várias aspectos do consumo dos muitos tipos de aguardente. Coisas como: Pego o garrafão é já balanceio/Que é pra mode vê se tá mesmo cheio/Num bebo de vez por que acho feio/No primeiro gorpe chego inté no meio/No segundo trago é que eu desvazeio, oi lá!.
A Moda da Pinga inaugura, até onde sei, este orgulho etílico do excesso na música brasileira. O que antes era uma demonstração de independência, no caso de Mirabeau ou de fuga da triste realidade, nas canções tristes e boêmias, transforma-se numa declaração do direito de beber e ficar bêbado, pura e simplesmente.
A afirmação mais clara disso veio nos anos 70, em plena ditadura, com a superelegante, e apelidada "divina", Elizeth Cardoso, que cantou orgulhosamente, e foi duramente criticada, Eu bebo sim/Eu tô vivendo/Tem gente que não bebe/E tá morrendo. Este samba, pode-se dizer que foi um marco fundador que gerou filhotes muitos anos depois.
Hoje há toda uma nova onda de canções sobre bebida no Brasil. E todas com este caráter dionisíaco, mirando o excesso e não o consolo ou o prazer mais sofisticado. Talvez sejam reflexo de uma civilização mais individualista, centrada no aqui e agora. Mas isso fica para uma próxima coluna. Não necessariamente a próxima. Mas prometo desenvolver o assunto.
sábado, 6 de novembro de 2010
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